domingo, 28 de abril de 2013

.Eu bêbado e a Lydia louca era uma parada de igual pra igual.


Levantei e fui até a mesa da cozinha onde ficava minha máquina de escrever. Acendi a luz, sentei, e escrevi uma carta de quatro páginas para Lydia. Daí, fui ao banheiro, peguei uma gilete, voltei pra mesa e caprichei num drinque. Dei um talho no dedo. O sangue escorreu. Assinei a carta com sangue. Fui até a caixa de correio, na esquina, e enfiei a carta.

BuKoWski

quinta-feira, 25 de abril de 2013

.Tanta lembrança esse carinho trouxe.



Quando entrei em contato com Chico Buarque já era 2004, depois disso comecei a entender o oculto das suas canções, as provocações políticas, antes não percebia nada disso. Fiz laboratório e busquei interpretar suas canções por mais de quatro anos, quase todos os dias. Era um delírio, Chico era inatingível. Mas, dentre todos seus discos, um me chamava muita atenção. Não percebi de imediato, mas me tocava. Quando em 2006 criei isso aqui Chico já estava em mim, seus poemas, suas músicas, seus autores preferidos, enfim... Em 2008 o pai de Chico inspirou meus estudos e estava tudo entre família. Era uma doçura descobrir as particularidades do pai e imaginar a infância do filho. Até que aquele disco de antes, despertar de muitas emoções, revelou seu mistério e me tirou da mira direta da família Buarque. O disco, a voz, a emoção, a entonação feminina era o diferencial, era o momento ápice do dueto, era Maria Bethânia. Mudei rapidamente o foco, agora era ela e depois dela era ele, inverteu-se tudo. Deveria ter estudado a mãe dela, mas como não me dou com antropologia e questões religiosas, muito escaparia. Ai virou essa coisa louca, Bethânia no seu devido pedestal, ao lado de Hilst, com outros ao redor. Nota: como foi bom descobrir um poema da Hilst cantado por Bethânia, foi quase mentira ouvir, foi um momento impar, coisa de orgasmos intelectuais, malabarismos da mente, coisa boa. Singularidades da formação de cada um, que muitas pensam que não, mas pesa.
LG

.Gostava de Lisa. Ela ia ser ultragostosa algum dia. Ou uma gostosa com personalidade. Mas amava Lydia.



Essa coisa de amor é complicadíssimo. Estava quase dormindo quando Lydia, de repente, sentou empertigada na cama. E gritou. Um grito alto.
- Que foi? – perguntei.
- Fica quieto.
Esperei. Lydia ficou sentada, sem se mover, por uns dez minutos. Daí, tombou de novo sobre o travesseiro.
- Eu vi Deus – disse ela. – Acabei de ver Deus.
- Escuta aqui sua cadela, você quer me deixar maluco?
Me levantei e comecei a me vestir. Estava puto. Não conseguia achar minha cueca. Foda-se, pensei. Deixei-a onde quer que estivesse. Já vestido fui pra sala.
- Você vai embora! – ela gritou.
Ela pulou em cima de mim. Costumava me atacar quando eu estava calado. Agora eu estava triste e calado. Saltei de banda e ela caiu no chão, rolou, ficou de costas. Passei por cima dela no caminho para porta. Ela espumava de raiva, rosnava, mordia os lábios. Olhei-a no chão. Ao me ver sair, ela deu uma rosnada, cravou as unhas na manga do meu casaco, deu um puxão – e lá se foi a manga.
Abri a porta e saltei pra fora, com um braço nu.
Quando me livrei dela, acelerei o carro. Olhei pelo retrovisor e a vi parada sob o luar, sozinha e imóvel. Minhas tripas se retorceram. Me senti doente, inútil, triste. Estava apaixonado por ela.
Bukowski

quarta-feira, 24 de abril de 2013

.Eu só ficava olhando para aqueles olhos azuis.


Eu tinha um amigo, o Bobby. Bobby andava encrencado consigo mesmo e com sua mulher, Valerie. Uma noite ele ligou e disse que estava trazendo Valerie para dormir comigo. Gostei da ideia. Valerie tinha 22 anos e era absolutamente adorável, com seus longos cabelos pretos. Uns olhos azuis malucos e um lindo corpo. Como Lydia, ela também tinha passado um tempo no hospício. Um pouco depois do telefonema escutei o carro de Bobby parando na frente do condomínio. Valerie desceu. Lembrei de Bobby me contando que, ao apresentar Valerie a seus pais, eles fizeram um comentário sobre o vestido dela – que eles tinham gostado muito – e ela disse: “Ah é? E que tal o resto?” E suspendeu o vestido acima dos quadris. Estava sem calcinhas. Nunca me esqueci disso. Bobby tinha uma grande mulher. Loucura a dele de jogá-la na mão dos outros. 
Bukowski

segunda-feira, 22 de abril de 2013

.Com o rosto lavado saiu do quarto com a resposta na ponta da língua, procurou a outra, não encontrou.


Subiu na mesa, parou a festa, tomou um gole e pediu atenção. Sapateou, rodou lá em cima, foi difícil. Era patético. Uma deprimente cena juvenil, sofrida e tocante, engraçada pra quem não estava envolvido. Mas tinha tanto pra expulsar, elefantes galopando suas costas. E começou... deixou porque teve que ir embora, não deixou por recalque meu. O sexo não funcionava mais, e a boca não tinha mais aquele gosto de desejo, era uma obrigação entende? Tudo rotina, tudo uma coisa vazia. Não era esse negócio de amor, paixão também não era. Era uma amizade gostosa. Era amizade também, porque agora nem isso é. E saiba vocês que fui a deixada por não dar muito empenho, coloquei mais gelo no gelo, encaixotei a sedução, me meti com meu trabalho. E assim foi. Levantava cedo e colocava só uma xícara na mesa do café, só minhas músicas tocavam, só meus livros estavam na estante, só minhas toalhas estavam no cesto, era tudo meu, até a solidão. Até os quadros eram meus. Não tive tempo de parar de pensar assim. Pensar que era tudo nosso, e que existíamos todos ali com o cachorro, eu queria isso. Também não tive, e me fez falta, foi uma cabeça minha esculpida, igual a do Bukowski, presente dado por ela, queria uma cabeça pra deixar na calçada, pra ligar desdenhando, pra fazer chantagem, mas não tinha cabeça. Mulher despeitada faz chantagem, mulher largada faz chantagem, mulher recalcada também. Desci e as pessoas me olhavam uns com cara de mais amigos do que antes, ternos, outros viravam o rosto quando eu os fitava como se dissessem “eu não ouvi nada disso”, e no caminhar fui relaxando, arrumando a postura, erguendo a cabeça e me livrando de tudo aquilo. O bom era a reflexão, teve casais brigando depois, teve gente se beijando, fazendo juras, uns ressaltaram boas qualidades, outros lavaram roupas sujas, e me esqueceram ali, ouvinte, observando o resultado. A menina que me ateou líquido no rosto foi vista encolhida e anônima, com o desgosto da resposta estampado. Eu sorridente e irônica. Digna de uma mentira bem contada e enfeitada, toda feliz com o resultado do improviso, do conto e da imaginação.
LG

.Recebeu todo o líquido do copo na cara e ouviu: - sua recalcada, por isso que sua mulher te deixou. Sem ligar enxugou o rosto e se recolheu.


Lydia e eu estávamos sempre brigando. Ela adorava um flerte e isso me irritava. Quando a gente saía pra comer, eu tinha certeza que ela ficava cruzando olhares com algum homem no restaurante. Quando meus amigos vinham me visitar e Lydia estava lá, eu percebia o papo dela se tornando íntimo e sexual. Ela costumava se sentar bem perto dos meus amigos, colando-se o máximo possível a eles. E eram as minhas bebedeiras que irritavam Lydia. Ela adorava sexo e os meus porres atrapalhavam nossas trepadas. “Ou você ta muito bêbado pro negócio à noite ou passando muito mal de manhã”, ela dizia. Lydia ficava uma fera se eu bebesse uma única garrafa de cerveja na sua frente. A gente rompia pelo menos uma vez por semana – “pra sempre” – mas acabava dando um jeito de voltar. Ela terminara de esculpir minha cabeça e me dera o troço de presente. Quando a gente rompia eu botava a cabeça ao meu lado, no banco da frente do carro, tocava pra casa dela, e deixava o troço na soleira da sua porta. Daí, ia pruma cabine telefônica, ligava pra ela e dizia: “ A porra da cabeça tai fora, na sua porta!” A cabeça ia e vinha o tempo todo...
Procure.

sábado, 20 de abril de 2013

.Ensaiou pequenas frases tortas, memoriosas, para falar, se é que estás aqui, dentro da minha evidência, neste quarto, atuando na minha própria circunstância.


É doença não é, Hilde? Hilde, sua mãe, sorria, não, é pequeno, é criança, e quando ainda somos assim, sempre de alguma coisa temos medo, não é doença, é medo. Cresceu. Foi adoçando a voz, vou te dar um nome, vem aqui, não te farei mais perguntas, vem, e ele veio, o porco, a anca tremulosa roçou minhas canelas, eu agachei, redondo de afago. Foi amornando a lisura do couro, e mimos e falas, e então descobriu que era uma porca o porco. Devo dizer-lhes que em contentamento conviveu com Hilde a vida inteira. Deu-lhe o nome da mãe em homenagem àquela frase remota: sempre de alguma coisa temos medo. E na manhã de um domingo celebrou casamento. Era uma solidão que só se curava com a porca. Um parêntese devo me permitir antes de terminar: a vida dele foi plena, visceral, lindamente feliz. Hilde também.
Hilst

.Espere que eu chego já.


Alfred voltou. 

sexta-feira, 19 de abril de 2013

.Há uma certeza em mim, uma indecência.

...era tarde demais para ser sozinha.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

.Quem é que haveria de duvidar?



Ninguém, a moça disse – seu ninguém, ninguém aqui duvida de nada. Pra outros tempos se duvidava de tudo, para deixar a desconfiança trabalhar. Mas hoje não, esses tempos são de liberdade das coisas de pesar, da reflexão do espírito, coisa de vela e oração. Coisa da alma. Tempo de deitar o joelho no chão e pedir pedido de não crente, e como se pede – para quem? Não se pede, só fica lá, penitente, crente que não crer também é fé. Coisa de loucura sem bebida. Loucura consciente. Se é que dá. Se é que a relação com a palavra ainda existe. Mas que coisa duvidosa. O não crente penitente do não pecado, mas sabedor do peso. Coisa mais ruidosa essa da cabeça cobrar ações que o corpo desdenha. Nada absurdo, nada sagrado, tudo coisa rotineira, mas o corpo não faz. Precisa fazer, mas não faz.
LG

terça-feira, 16 de abril de 2013

.Como se no encobrir quisesse dizer alguma coisa.



Por que era, então, que desta vez, desistiu de ir, o escuro do corpo negou suas vontades, e depois a alma se entristeceu? A música repartiu as tristezas por todos, cada um com seu quinhão. Descansamente, de certo modo, a festa era coisa que molestava. Também não se arma festa todo dia. E ninguém desgostou mais da festa do que meu eu de dentro. Sem reclamar seguiu. Nada falou, quem sabe coragem não tinha?
ROSA, G. Manuelzão e Miguilim.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

.Que estranha forma de vida, quem lhe daria atenção?



"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces. Estendendo-me os braços, e seguros de que seria bom que eu os ouvisse. Quando me dizem: "vem por aqui!" eu olho-os com olhos lassos, (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) E cruzo os braços, e nunca vou por ali... A minha glória é esta: não acompanhar ninguém. Não, não vou por aí! Só vou por onde me levam meus próprios passos... Se ao que busco saber nenhum de vós responde por que me repetis: "vem por aqui!"? Prefiro escorregar nos becos lamacentos, redemoinhar aos ventos, como farrapos, arrastar os pés sangrentos, a ir por aí... Se vim ao mundo, foi só para desflorar florestas virgens, e desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! O mais que faço não vale nada. Como, pois, sereis vós que me dareis impulsos, ferramentas e coragem para eu derrubar os meus obstáculos?... Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, e vós amais o que é fácil! Eu amo o Longe e a Miragem, amo os abismos, as torrentes, os desertos... Ide! Tendes estradas, tendes jardins, tendes canteiros, tendes pátria, tendes tetos, e tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios... Eu tenho a minha Loucura! Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, e sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios... Ah, que ninguém me dê piedosas intenções, ninguém me peça definições! Ninguém me diga: "vem por aqui"! A minha vida é um vendaval que se soltou, é uma onda que se levantou, é um átomo a mais que se animou... Não sei por onde vou, só sei que não vou por aí!
Cântico Negro - José Régio na voz de Maria Bethânia.