sábado, 19 de março de 2016

Se não fosse Joyce, poderia ser Aristóteles.

Ao seu cotovelo um siamês delicado esmiuçava um tratado de estratégia. Nutridos e nutrientes cérebros ao meu redor: sob lâmpadas incandescentes, pingentes com filamentos pulsando desmaiados: e na escuridão de minha mente uma preguiça do inframundo, relutando, avessa à claridade, remexendo suas dobras escamosas de dragão. Pensamento é o pensamento do pensamento. Claridade tranquila. A alma é de certo modo tudo que é: a alma é a forma das formas. Tranquilidade súbita, vasta candescente: forma das formas. Parou para ouvir o pensamento. Tendo-se lembrado que sobre os corações covardes paira uma sombra. (p.38)


JOYCE, James. Ulisses. Tradução de Antônio Houaiss. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.

https://www.youtube.com/watch?v=8L7Xsy7fBPw

quinta-feira, 3 de março de 2016

.Levou os meus vinte anos e meu coração.

O fato é que nunca se sentira tão mal como agora. Reclamava de dor pelo corpo todo, vieram pessoas de fora para conferir, tias ligando, amigos mandando mensagens. Alfred não gostava, sabia dos hábitos reclusos da senhora, mas, na atual conjuntura, suportava as visitas. A senhora mandou padronizar uma mensagem no telefone, um bip que dizia mentiras sobre seu real estado, falava, entre outra coisas, que ela estava bem e que logo voltaria a sua rotina. Eu sabia, eu Alfred, eu amigo, eu sempre ali, que era mentira das bravas, que a senhora estava com o olhar sem brilho e distante. Tratei de fazer seu prato preferido e me coloquei ao seu dispor para o que sempre a agradou: me ver ali por perto devoto de toda atenção, no fundo meu diagnóstico era carência. Ela fingia que não, me mandava sair do quarto algumas vezes e quase sempre brigava comigo, mas amava os dengos, a presença e me contava histórias. Eu ria de todas, não por interesse em satisfazê-la, mas por serem engraçadas, e quando eu ria, eu Alfred, eu mordomo, eu presente, a senhora também sorria escondendo o sorriso no canto da boca. Ela era ela naquele momento e eu sentia felicidade por ela existir. Sempre penso, eu Alfred, eu nada, eu disciplina, que ela também sentia-se feliz por me ver, sabia disso porque um dia só de ouvir minha voz ela se acalmou. Tenho curiosidade em saber o que pensas e quem amas, talvez isso faça com que eu permaneça (embora não descubra quase nada, sigo feliz, eu Alfred, eu cansado, eu submisso), agradecendo os delírios dela e a mente dela, quando, em mais uma noite, ela trança suas linhas tortas e me dá vida. Sigo, eu Alfred, eu feliz, eu ajudante, esperando o retorno firme daquela que me criou.


LG