domingo, 29 de maio de 2016

.Dow Jones.


Estou aqui rodeado de convenções. Hoje de manhã uma mocinha, bem convencional, de uma convenção de informática, me perguntou de qual convenção eu era. Disse que era da convenção dos escritores e senti que ela não acreditou. Tentei uma segunda: estou em convenção comigo mesmo. Ela não entendeu. Tá difícil o nível aqui, como convém. Sei que não é nada convencional ficar na beira da praia bisbilhotando convenções alheias. Mas sou um profissional, já disse. Profissional da curiosidade. Tenho curiosidade por essas pessoas que conseguem trabalhar juntas. Ficam lá na salinha ouvindo o chefe ensinar, pasmas. Como prestam atenção! Tem tanta coisa boa pra se aprender na vida e ela aprendendo logo aquilo? Será que quando ela voltar, ainda com o barulho do mar lá fora, vai perguntar para o namorado, toda cheia de sabedoria: - Você sabe o que aconteceu com o Dow Jones? E se o namorado disser que nem sabe quem é esse sujeito, vai dançar. As convenções existem é pra isso. Como seria uma convenção de escritores? Uma fogueira de vaidades? Testemunhas de acusação? Um álbum de família? A mãe? O filho pródigo? Um encontro marcado? Um jogo de amarelinha? Uma alquimia? Ou seria uma utopia e uma peste?

sábado, 28 de maio de 2016

.Tem mais coisa ai?

Todo lugar que chego, você não fica
Tudo que eu te peço, você não dá
Se dou opinião, você implica
Toda vez que ligo, você não está

Por que fazer questão desse jogo duro
De me mostar o muro a nos dividir
Seu coração de fato está escuro
Ou por detrás do muro tem mais coisa ai?

Toda vez que passo, você não nota
Eu conto uma lorota, você nem ri
Eu faço fina flor, vem, me desbota
Me boto numa fria, não socorre

Eu cavo um elogio, isso nem te ocorre
A indiferença escorre fria a me ferir
Será por que você não me suporta
Ou dentro dessa porta tem mais coisa ai?

Entre o bem e o mal a linha é tênue, meu bem
Entre o amor e o ódio a linha é tênue, também
Quando o desprezo a gente muito preza
Na verdade o que despreza é o que se dá valor

Falta descobrir a qual desses dois lados convém
Sua tremenda energia para tanto desdém

Ou me odeia descaradamente, ou disfarçadamente me tem amor

sexta-feira, 13 de maio de 2016

.Escolhe também outro disco, que esse já era.


Gosta de dar aulas para Maria Clara: elas são, hoje, fugas da rotina da universidade da qual começa a sentir-se cansado, ensinando, pelo décimo ano consecutivo, as mesmas coisas a pessoas invariavelmente desinteressadas e desinteressantes. Seu relacionamento com os alunos é frio, quase impessoal: um pouco por timidez, um pouco por européias noções de hierarquia que se recusa a abandonar. Isso nunca chegou a incomodá-lo, especialmente há alguns anos atrás, quando a presença de Lillian tornava outras presenças desnecessárias. Depois, as relações entre ambos foram-se deteriorando e, quando mudou-se para o Brasil, ela recusou-se a acompanhá-lo. Embora tivesse sentido algum prazer em mortificar-se com o fracasso de seu casamento, anos depois Archibald se viu forçado a reconhecer que, na época, o que sentira fora principalmente uma sensação de alívio e liberdade. Não havia mais ninguém para controlar-lhe os movimentos ninguém para reclamar dos cachimbos, impedi-lo de dedicar-se a seus poemas ou abaixar o volume da vitrola. Não havia mais ninguém, igualmente, para afagar-lhe os cabelos, nenhum corpo à noite. Esta ausência, entretanto, só veio a notar muito tempo depois na verdade, quando começou a dar aulas para Maria Clara. Agora gostaria de ter, eventualmente, alguém com quem conversar, algum amigo. Mas os anos de solidão e uma timidez que, geralmente, não se encontra nos homens atraentes, o desacostumaram de conversas íntimas, de confidências sussurradas a meia luz por sobre os cinzeiros. Na universidade, não consegue trocar mais do que polidos cumprimentos com os colegas; dos alunos, sente-se cada vez mais distante com o passar dos anos. Aos 40 anos é um homem só — e, se por um lado, a solidão ensinou-lhe muito a respeito de si mesmo, há sentimentos sobre os quais não lhe disse nada, dos quais começa a ter medo porque os julgava esquecidos para sempre.

Rónai

.Remexe uma pilha de cadernos, procura a pagina certa.

Humildade com técnica é o seguinte: só se aproximando com humildade da coisa é que ela não escapa totalmente. Descobri este tipo de humildade, o que não deixa de ser uma forma engraçada de orgulho. Orgulho não é pecado, pelo menos não grave: orgulho é coisa infantil em que se cai como se cai em gulodice. Só que orgulho tem a enorme desvantagem de ser um erro grave, com todo o atraso que erro dá à vida, faz perder muito tempo.


Lispector

.Relincho de amor, malgastado porque o escutar se faz em ouvidos velhos.

Começo a sentir o galope da minha música, cascos rompendo um linho de teia, cada um de nós tem a sua dileta melodia, sabe abrir-se e fechar-se, lentidão de sanfona, rapidez de fole, a música do seu corpo, da sua fala, do seu caminhar deixa rastro nos ares do sigilo e pergunta, nunca se sabe até onde o último sonido, pensamos agora vai terminar, último acorde, e atrás de nós outra vez os pisados de lebre, roçar leve nos capins, perguntamos cantaste? Ela responderia: lá dentro sim. E a música continua nos olhos, no ficar parada, no encostar-se à janela.


Hilst