quarta-feira, 30 de novembro de 2011

.Guarde o que quer que guarda.

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.


Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.


Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.

.Justo.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

.Vem do nada.

Vem revestida às vezes de aspereza

Vem com brilhos de dor e madrepérola

Mas ressoa cruel e objeta

Se me proponho ouvir.


HH

domingo, 27 de novembro de 2011

.De mastigar e lamber a carne, o escorrer vermelho, ferido.

Ouvia sempre quando menina as conversas de muitas mães da aldeia, que uma escondeu seu filho num buraco de pedras, e escondida também ao lado dele envelheceu para que não o levassem as guerras, e outra muito pequena, que deixou seu filho nas ramagens um instante enquanto ia banhar-se no rio e na volta teve o espanto de ver a três passos da criança um animal tão grande como o tigre, de muita semelhança, a pele com riscados, as patas redondas, num rugido o animal mostrou dentes de lança, e ela tão pequena atirou-se ao corpo da fera, também deu rugidos como se fosse a fêmea do animal maldito, lutou fêmea que era, o pequenino balançava-se rindo, de inconsciência gentil, lhe parecendo talvez que a mãe o mimava com uma cena de circo, e de cicatrizes tão fundas ela, ao longo da vida, escondeu a cara. Era um espectro saído das águas.

Hilst, H. Tu não te moves de Ti. SP: Globo, 2004. (p.73)

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

.Para mim foi um último fracasso e deserção.

E fora uma despedida de fugitivo e vencido, uma declaração de falência ante mim mesmo, uma despedida sem consolo, sem supremacia, sem humor. Da mesma forma que um paciente de úlcera estomacal se despede do leitão assado. Furioso, corri sob a luz dos lampiões, furioso e com uma tristeza mortal. E assim sendo, aquela comédia tinha de acabar hoje mesmo. Vá para casa, Harry, e corte o pescoço! Chega de esperar! Corri pelas ruas de um lado para outro, impulsionado pela miséria. Nada me restava de tudo aquilo, nem sequer o arrependimento.

HESSE, Hermann. O lobo da estepe. RJ: Record, 2007. (p.94-5)



quarta-feira, 23 de novembro de 2011

.Mas que bandeira é esta?


Numa época em que se fala tanto em democracia, igualdade, mobilidade social, ausência de classes, e assim por diante, continua a ser um fato básico da vida dos países capitalistas avançados o de que a imensa maioria dos homens e mulheres daqueles países tem sido governada, representada, administrada, julgada e comandada na guerra por pessoas oriundas de outras classes econômicas e socialmente superiores e relativamente distantes.


MILIBAND, R. O Estado na Sociedade Capitalista. RJ: Zahar, 1972. (p.87)


.Velha.


Vá para o inferno, porque eu estou voltando.


Muitas palavras parecendo sábias. Muito carregante de limpezas, e na alma a secura misturada à volúpia e à vergonha. Sorri de tais e tantas sabedorias e me encontrei tão tímida. Sorri mais largo. Estava sim tomada e descrever me parece serviço de eruditos, dos que pernoitam cabeça nos papéis. [A continuação desse fragmento é magistral, busque-a]


HILST, H. Tu não te moves de ti. São Paulo, Globo: 2004. (p.69)


.O que eu via era amplo e descabido para o entendimento.


Essas coisas na minha mente ou no de dentro dos olhos, e fora onde estou um desenho arrumado, uma pintura de calma, ainda me sei e sou à frente desta cara? Eu morreria amplidões de vezes para voltar à minha tarde rara.


HH



sábado, 19 de novembro de 2011

.Levantou-se e enquanto levantava me dizia que melhor teria feito se deitada ficasse.



Enfrentamo-nos cara a cara, as mandíbulas duras, aquilo tudo parecia a dança tosca e lenta de uma raça esquecida, vi paisagens na mente, torridez, vestes de linho trançado, história recuando na sua cara e lá dentro dos olhos vi-me, eu outra mas eu mesma, tão encorpada e alta, tão morena, um luzir de faces de nós dois. Conto esta estória desta forma como se houvesse o tempo de horas para contá-la, mas assim não era o que se passava em mim.

HH

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

.Enquanto os livros se estorciam entre nuvens de fagulhas e partiam, calcinados, com o vento.

- Mas eu não quero me encontrar com gente louca, observou Alice.
- Você não pode evitar isso, replicou o gato.
- Todos nós aqui somos loucos. Eu sou louco,você é louca.
- Como você sabe que eu sou louca? Indagou Alice.
- Deve ser, disse o gato, Ou não estaria aqui.

.Olhou a imensa nuvem de poeira, que tombava, e o silêncio eterno estender-se de novo sobre o seu universo.

É necessário que observe o que me rodeia, que conserve constantemente os olhos bem abertos ao mundo; a verdadeira maneira de o tocar autenticamente é integrá-lo em mim mesmo, no meu sangue, nas minhas veias que o agitarão mil, dez mil vezes por dia. Depois guardá-lo-ei em mim, para sempre. Agarrarei o mundo para nunca mais o largar.

Ray Bradbury - Fahrenheit 451

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

.Rasga meu coração. Acorda!

E aquele médico bonzinho que arrancou os olhos do Einstein e pôs no vidro e agora vai vendê-los por cinco milhões de dólares!

Sim, é verdade, eu tenho medo das gentes, pra dizer a verdade eu me cago de medo das gentes! O que eu tenho visto de pulhas, de máscaras atadas dia e noite sobre umas caras de pedra... O que eu tenho visto de mesquinharia, de crueldade, de torpeza, de estupidez... Que Natal? Que Natal?

HH