segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

.Enquanto escrevo estou na academia e é aqui que eu respiro.

Começou me relatando que em um dos seus trabalhos na penitenciária local foi designado que analisasse um histórico criminal de um indivíduo que havia matado friamente um homem. Explicou-me que era um projeto em conjunto com advogados, sociólogos e algumas lideranças da bandeira dos direitos humanos. Perguntei o que encontrou vasculhando o tal histórico, foi quando me disse a frase que foi anotada rapidamente sem que pudesse me ver pelo retrovisor: - “Conclui que aquele garoto, então assassino, já nasceu morrendo”. Encontrei agora o comprovante bancário com tal frase, se anotei foi porque tive a intenção de mais adiante escrever sobre. E foi nas pessoas que nascem morrendo que se concentrou nossos assuntos do almoço. Refletia sozinha que de fato minhas inclinações eram muito mais teóricas que práticas e sobre essa segunda tive uma aula de bravura, mesmo velando por minhas limitações. No desdobrar do dia e na mesma companhia de antes, pela terceira vez adentrei aquele lugar inóspito, agora não tome esse cenário pela penitenciária, estávamos em uma favela. Ainda tive o impulso de esconder brincos e anéis. Senti uma vergonha imensa desse ato. Senti vergonha das limitações também, mas tive picos de melhoras. Esperança, talvez. O fato era que estava longe do meu habitat, eles eram meu outro e eu o outro deles. De volta a esperança, como lemos em São Bernardo (digno Graciliano Ramos), um daqueles livros-base que julgamos chato quando nos encontramos no ensino médio: “se ao menos a criança chorasse, mas ela não chora, ela não chora...”.

LG


.Passa uma borboleta por diante de mim.


Nenhum de nós tem nome ou existência plausível. Se pudéssemos ser ruidosos ao ponto de nos imaginarmos rindo, riríamos sem dúvida de nos imaginarmos vivos.


Fernando Pessoa

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Primeiro levaram os negros mas não me importei com isso...eu não era negro.

Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei

Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.

Bertold Brecht


.E que só aparece quando menos se espera.

Quem não fala idiomas, falam dialetos. Que não praticam religiões, praticam superstições. Que não fazem arte, fazem artesanato. Que não são seres humanos, são recursos humanos. Que não tem cultura, têm folclore. Que não têm cara, têm braços. Que não têm nome, têm número. Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local. Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.

Os ninguéns - Eduardo Galeano

.E você se vira para o lado esquerdo pra pegar o sol nas costas e não direto nos olhos.

As pulgas sonham em comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico de sorte chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chove ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura. Os ninguéns: os filhos de ninguém, os dono de nada. Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos: Que não são embora sejam.

Os ninguéns - Eduardo Galeano

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

.E se todos decidissem o que é certo ou errado por sí mesmos?

[…] Cada promessa é uma ameaça; cada perda, um encontro. Dos medos nascem as coragens; e das dúvidas, as certezas. Os sonhos anunciam outra realidade possível e os delírios, outra razão. Somos, enfim, o que fazemos para transformar o que somos. A identidade não é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas a sempre assombrosa síntese de contradições nossas de cada dia. Nessa fé, fugitiva, eu creio. Pra mim, é a única fé digna de confiança, porque é parecida com o bicho humano, fodido mas sagrado, e à louca aventura de viver o mundo.

Eduardo Galeano - Livro dos abraços