sábado, 29 de setembro de 2012

.Eu sei.



Como ela era na víscera, heim? Ela era eu. Ela era toda pra fora e ao mesmo tempo toda pra dentro. Ela era pra fora do dar, ela dava as coisas que tinha, dava coelhos, carneiros, cordeirinhos, arroz feijão pra todo mundo. Nisso ela era pra fora, apesar de que esse pra fora vem de dentro. Depois ela era pra dentro dos adentros, ela entrava no quarto e ficava se desentranhando, achando o mundo cheio de gente triste, achando a vida bonita, mas cheia de gente de ferro, gente dura como coisa muitíssimo dura. Ela não era simples, nada disso, era mulher muito complicada, muito torcida, como eu mesmo. Eu quando eu digo que ela se desentranhava quero dizer que ela ficava se descobrindo, que ela punha pra fora os pensamentos de dentro, que ela pensamenteava alto, entendes? Não entende, ninguém entende.
Hilst, H. Fluxo-Floema.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

.Faço cobra morder o rabo.



Já gozei de boa vida. Tinha até meu bangalô. Cobertor, comida, roupa lavada. Vida veio e me levou. Fui eu mesmo alforriado, pela mão do Imperador. Tive terra, arado, cavalo e brida. Vida veio e me levou. Hoje é dia de visita. Vem aí meu grande amor. Ela vem toda de brinco, vem todo domingo tem cheiro de flor. Quem me vê, vê nem bagaço, do que viu quem me enfrentou.  Campeão do mundo em queda de braço. Vida veio e me levou. Li jornal, bula e prefácio, que aprendi sem professor. Freqüentei palácio sem fazer feio. Vida veio e me levou. Eu gerei dezoito filhas. Me tornei navegador. Vice-rei das ilhas da Caraíba. Vida veio e me levou. Fechei negócio da China. Desbravei o interior. Possuí mina de prata, jazida. Vida veio e me levou. Hoje é dia de visita. Vem aí meu grande amor. Hoje não deram almoço, né? Acho que o moço até nem me lavou. Acho que fui deputado. Acho que tudo acabou. Quase que já não me lembro de nada. Vida veio e me levou.
Chico Buarque – Na voz dela.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

.Se mil anos vivesse, mil anos te tomaria.

Imagina-te a mim
A teu lado inocente
A mim, e essa mistura
De piedosa, erudita, vadia
E tão indiferente.

Tu sabes.
Poeta buscando altura
Nas tuas coxas frias.

Se eu vivesse mil anos
Suportaria
Teu a ti procurar-se.
Te tomaria. Meu Deus,
Tuas luzes. Teu constraste.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

.No Oásis de Bethânia.



Medo não me alcança, no deserto me acho, faço cobra morder o rabo, escorpião vira pirilampo. Onde vai valente? Você secô seus olhos insones, secaram, não veêm brotar a relva que cresce livre e verde, longe da tua cegueira. Seus ouvidos se fecharam à qualquer musica, qualquer som, nem o bem nem o mal, pensam em ti, ninguém te escolhe, você pisa na terra mas não sente apenas pisa, apenas vaga sobre o planeta, já nem ouve as teclas do teu piano, você está tão mirrado que nem o diabo te ambiciona, não tem alma você é o oco, do oco, do oco, do sem fim do mundo. Eu posso engolir você só pra cuspir depois, minha forma é matéria que você não alcança. Se choro, quando choro, e minha lágrima cai, é pra regar o capim que alimenta a vida, chorando eu refaço as nascentes que você secou. Se desejo, o meu desejo faz subir marés de sal e sortilégio, vivo de cara pra o vento, na chuva, e quero me molhar. Sou como a haste fina que qualquer brisa verga mas, nenhuma espada corta.
Maria Bethânia

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

.A última carta que Olga escreveu a Luís Carlos Prestes e а filha, ainda em Ravensbrück, na noite da viagem de ónibus que a levaria а morte em Bernburg.



Queridos:

Amanhã vou precisar de toda a minha força e de toda a minha vontade. Por isso, não posso pensar nas coisas que me torturam o coração, que são mais caras que a minha própria vida. E por isso me despeço de vocês agora. É totalmente impossível para mim imaginar, filha querida, que não voltarei a ver-te, que nunca mais voltarei a estreitar-te em meus braços ansiosos. Quisera poder pentear-te, fazer-te as tranças - ah, não, elas foram cortadas. Mas te fica melhor o cabelo solto, um pouco desalinhado. Antes de tudo, vou fazer-te forte. Deves andar de sandálias ou descalça, correr ao ar livre comigo. Sua avó, em princípio, não estará muito de acordo com isso, mas logo nos entenderemos muito bem. Deves respeitá-la e querê-la por toda a tua vida, como o teu pai e eu fazemos. Todas as manhãs faremos ginástica... Vês? Já volto a sonhar, como tantas noites, e esqueço que esta é a minha despedida. E agora, quando penso nisto de novo, a ideia de que nunca mais poderei estreitar teu corpinho cálido é para mim como a morte. Carlos, querido, amado meu: terei que renunciar para sempre a tudo de bom que me destes? Conformar-me-ia, mesmo se não pudesse ter-te muito próximo, que teus olhos mais uma vez me olhassem.  E queria ver teu sorriso. Quero-os a ambos, tanto, tanto. E estou tão agradecida à vida, por ela haver me dado a ambos. Mas o que eu gostaria era de poder viver um dia feliz, os três juntos, como milhares de vezes imaginei. Será possível que nunca verei o quanto orgulhoso e feliz te sentes por nossa filha?

Querida Anita, meu querido marido, meu garoto: choro debaixo das mantas para que ninguém me ouça pois parece que hoje as forças não conseguem alcançar-me para suportar algo tão terrível. É precisamente por isso que me esforço para despedir-me de vocês agora, para não ter que fazê-lo nas últimas e difíceis horas. Depois desta noite, quero viver para este futuro tão breve que me resta. De ti aprendi, querido, o quanto significa a força de vontade, especialmente se emana de fontes como as nossas. Lutei pelo justo, pelo bom e pelo melhor do mundo. Prometo-te agora, ao despedir-me, que até o último instante não terão porque se envergonhar de mim. Quero que me entendam bem: preparar-me para a morte não significa que me renda, mas sim saber fazer-lhe frente quando ela chegue. Mas, no entanto, podem ainda acontecer tantas coisas... Até o último momento manter-me-ei firme e com vontade de viver. Agora vou dormir para ser mais forte amanhã. Beijos pela última vez.

Olga.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

.Quando se viveu um amor com alguém, fica-se marcado para sempre e depois transporta-se essa história de pessoa a pessoa.



A cabine oscilava, ali estavam meus amigos e a dona do meu amor, recolheram as cartas, o jogo era uma farsa, todos os encontros eram farsas. Começamos então a juntar o que haviamos ganhado, poderiamos fazer fortuna. Depois criar canários, fazer uma horta, um jardim, quem sabe. Farley e Jimmy só não eram os maiores perdedores porque eu existia. Sabia que pela manhã estaria arrependido de não tentar, mas, naquele instante, contentava-se com o descanso e o cheiro fresco do perfume da amada, com o calor arrebatador que iria descer sobre sua imaginação do não feito. Com as têmporas latejando, apoiou os cotovelos na mesa e descansou a cabeça entre as mãos. A porta da cabine se abriu e apareceu outra, numa auréola de luz cinzenta, não como a de Cecília, nenhuma brilhava mais e tanto: - alvorada, senhoras! Brindou ao vento, contentando-se.
LG