domingo, 9 de novembro de 2014

.Viver sem tempos mortos.

A impressão que eu tenho é de não ter envelhecido embora eu esteja instalada na velhice. O tempo é irrealizável. Provisoriamente, o tempo parou pra mim. Provisoriamente. Mas eu não ignoro as ameaças que o futuro encerra, como também não ignoro que é o meu passado que define a minha abertura para o futuro. O meu passado é a referência que me projeta e que eu devo ultrapassar. Portanto, ao meu passado eu devo o meu saber e a minha ignorância, as minhas necessidades, as minhas relações, a minha cultura e o meu corpo. Que espaço o meu passado deixa pra minha liberdade hoje? Não sou escrava dele. O que eu sempre quis foi comunicar da maneira mais direta o sabor da minha vida, unicamente o sabor da minha vida. Acho que eu consegui fazê-lo; vivi num mundo de homens guardando em mim o melhor da minha feminilidade. Não desejei nem desejo nada mais do que viver sem tempos mortos.


Inspirada na correspondência de Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

.De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos.

O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, sou nascido diferente. Eu sou eu mesmo. Divêrjo de todo mundo... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre - o senhor solte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém!


GUIMARÃES ROSA

terça-feira, 4 de novembro de 2014

.Nada.

Não sei, lembro-me de que era feriado. Ah, como então eu queria o silêncio: ele me distrairia daquele grande vácuo divino que eu tinha contigo. Eu, a deusa repousando; tu, no Olimpo, O grande bocejo da felicidade? A distância se seguindo à distância, e à outra distância e mais outra - a fartura de espaço que o feriado tem. Aquele desenrolar-se de calma energia, que eu nem entendia. Aquele beijo já sem sede na testa distraída, o beijo pensativo no já amado. Era feriado nacional. As bandeiras hasteadas. Mas a noite caindo. E eu não suportava a transformação lenta de algo que lentamente se transforma no mesmo algo, apenas acrescentado de mais uma gota idêntica de tempo. Lembro-me que eu te disse: - Estou com um pouquinho de enjôo de estômago - disse eu respirando com alguma saciedade. - Que faremos hoje de noite? - Nada - respondeste tão mais sábio que eu -, nada, é feriado.


A paixão segundo G.H

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

.Eu quero a recompensa.

Ah, eu quero te dizer, que o instante de te ver custou tanto penar. Não vou me arrepender! Só vim te convencer, que eu vim pra não morrer, de tanto te esperar. Eu quero te contar! Das chuvas que apanhei, das noites que varei, no escuro a te buscar. Eu quero te mostrar! As marcas que ganhei, nas lutas contra o rei...  

Buarque, Chico.