De Antonio Prata
Eu sou meio intelectual, meio de
esquerda, por isso freqüento bares meio ruins. Não sei se você sabe, mas nós,
meio intelectuais, meio de esquerda, nos julgamos a vanguarda do proletariado,
há mais de 150 anos. (Deve ter alguma coisa de errado com uma vanguarda de mais
de 150 anos, mas tudo bem). No bar ruim que ando freqüentando nas últimas
semanas o proletariado é o Betão, garçom, que cumprimento com um tapinha nas
costas acreditando resolver aí 500 anos de história. Nós, meio intelectuais,
meio de esquerda,adoramos ficar "amigos" do garçom, com quem falamos
sobre futebol enquanto nossos amigos não chegam para falarmos de literatura. "Ô
Betão, traz mais uma pra gente", eu digo, com os cotovelos apoiados na
mesa bamba de lata, e me sinto parte do Brasil. Nós, meio intelectuais, meio de
esquerda, adoramos fazer parte do Brasil, por isso vamos a bares ruins, que tem
mais a cara do Brasil que os bares bons, onde se serve petit gateau e não tem
frango à passarinho ou carne de sol com macaxeira que são os pratos
tradicionais de nossa cozinha. Se bem que nós, meio intelectuais, quando
convidamos uma moça para sair pela primeira vez, atacamos mais de petit gateau
do que de frango à passarinho, porque a gente gosta do Brasil e tal, mas na
hora do vamos ver uma europazinha bem que ajuda. A gente gosta do Brasil, mas
muito bem diagramado. Não é qualquer Brasil. Assim como não é qualquer bar
ruim. Tem que ser um bar ruim autêntico, um boteco, com mesa de lata, copo
americano e, se tiver porção de carne de sol, a gente bate uma ali mesmo. Quando
um de nós, meio intelectuais, meio de esquerda, descobre um novo bar ruim que
nenhum outro meio intelectual, meio de esquerda freqüenta, não nos contemos:
ligamos pra turma inteira de meio intelectuais, meio de esquerda e decretamos
que aquele lá é o nosso novo bar ruim. Porque a gente acha que o bar ruim é
autêntico e o bar bom não é, como eu já disse. O problema é que aos poucos o
bar ruim vai se tornando cult, vai sendo freqüentado por vários meio
intelectuais, meio de esquerda e universitárias mais ou menos gostosas. Até que
uma hora sai na Vejinha como ponto freqüentado por artistas, cineastas e
universitários e nesse ponto a gente já se sente incomodado e quando chega no
bar ruim e tá cheio de gente que não é nem meio intelectual, nem meio de
esquerda e foi lá para ver se tem mesmo artistas, cineastas e universitários, a
gente diz: eu gostava disso aqui antes, quando só vinha a minha turma de meio
intelectuais, meio de esquerda, as universitárias mais ou menos gostosas e uns
velhos bêbados que jogavam dominó. Porque nós, meio intelectuais, meio de
esquerda, adoramos dizer que freqüentávamos o bar antes de ele ficar famoso,
íamos a tal praia antes de ela encher de gente, ouvíamos a banda antes de tocar
na MTV. Nós gostamos dos pobres que estavam na praia antes, uns pobres que
sabem subir em coqueiro e usam sandália de couro, isso a gente acha lindo, mas
a gente detesta os pobres que chegam depois, de Chevete e chinelo Rider. Esse
pobre não, a gente gosta do pobre autêntico, do Brasil autêntico. E a gente
abomina a Vejinha, abomina mesmo, acima de tudo. Os donos dos bares ruins que a
gente freqüenta se dividem em dois tipos:os que entendem a gente e os que não
entendem. Os que entendem percebem qual é a nossa, mantém o bar autenticamente
ruim, chamam uns primos do cunhado para tocar samba de roda toda sexta-feira,
introduzem bolinho de bacalhau no cardápio e aumentam em 50% o preço de tudo.
Eles sacam que nós, meio intelectuais, meio de esquerda, somos meio bem de vida
e nos dispomos a pagar caro por aquilo que tem cara de barato. Os donos que não
entendem qual é a nossa, diante da invasão, trocam as mesas de lata por umas de
fórmica imitando mármore, azulejam a parede e põem um som estéreo tocando
reggae. Aí eles se fodem, porque a gente odeia isso, a gente gosta, como já
disse algumas vezes, é daquela coisa autêntica, tão brasileira, tão raiz. Não
pense que é fácil ser meio intelectual, meio de esquerda, no Brasil! Ainda mais
porque a cada dia está mais difícil encontrar bares ruins do jeito que a gente
gosta, os pobres estão todos de chinelo Rider e a Vejinha sempre alerta, pronta
para encher nossos bares ruins de gente jovem e bonita e a difundir o petit
gateau pelos quatro cantos do globo. Para desespero dos meio intelectuais, meio
de esquerda, como eu que, por questões ideológicas, preferem frango a
passarinho e carne de sol com macaxeira (que é a mesma coisa que mandioca mas é
como se diz lá no nordeste e nós, meio intelectuais, meio de esquerda, achamos
que o nordeste é muito mais autêntico que o sudeste e preferimos esse termo,
macaxeira, que é mais assim Câmara Cascudo,saca?). -Ô Betão, vê um cachaça aqui
pra mim. De Salinas quais que tem?
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