Já li tudo, já tentei macrobiótica psicanálise drogas
acupuntura suicídio ioga dança natação cooper astrologia patins marxismo
candomblé boate gay ecologia, sobrou só esse nó no peito, agora faço o quê? não
é plágio do Pessoa não, mas em cada canto do meu quarto tenho uma imagem de
Buda, uma de mãe Oxum, outra de Jesusinho, um pôster de Freud, às vezes acendo
vela, faço reza, queimo incenso, tomo banho de arruda, jogo sal grosso nos
cantos, não te peço solução nenhuma, você vai curtir os seus nativos em Sri
Lanka depois me manda um cartão postal contando qualquer coisa como ontem à
noite, na beira do rio, deve haver uma porra de rio por lá, um rio lodoso, cheio
de juncos sombrios, mas ontem na beira do rio, sem planejar nada, de repente,
sabe, por acaso, encontrei um rapaz de tez azeitonada e olhos oblíquos que.
Hein? claro que deve haver alguma espécie de dignidade nisso tudo, a questão é
onde, não nesta cidade escura, não neste planeta podre e pobre, dentro de mim?
ora não me venhas com autoconhecimentos-redentores, já sei tudo de mim, tomei
mais de cinqüenta ácidos, fiz seis anos de análise, já pirei, lembra? você me levava
maçãs argentinas e fotonovelas italianas, eu te olhava entupida de mandrix e babava soluçando
perdi minha alegria, anoiteci, roubaram minha esperança, enquanto você,
solidário & positivo, apertava meu ombro com sua mão apesar de tudo viril
repetindo reage, companheira, reage, a causa precisa dessa tua cabecinha privilegiada,
teu potencial criativo, tua lucidez libertária e blablablá blablablá. Ninguém
me tocava, mas eu reagi, despistei, voltei a isso que dizem que é o normal, e
cadê a causa, cadê a luta, cadê o po-ten-ci-al criativo? Mato, não mato,
atordôo minha sede com as meninas do Bar ou encho a cara sozinha aos sábados esperando
o telefone tocar, e nunca toca, neste apartamento que pago com o suor do
po-ten-ci-al criativo da bunda que dou oito horas diárias para aquela estadual.
Mas, eu quero dizer, e ela me corta mansa, claro que você não tem culpa,
coração, caímos exatamente na mesma ratoeira, a única diferença é que você
pensa que pode escapar, e eu quero chafurdar na dor deste ferro enfiado fundo
na minha garganta seca que só umedece com vodca, não, não estou desesperada,
não mais do que sempre estive, nothing special, baby, não estou louca nem
bêbada, estou é lúcida pra caralho.
Não se preocupe, não vou tomar nenhuma medida drástica, a não
ser continuar, tem coisa mais autodestrutiva do que insistir sem fé nenhuma?
Ah, passa devagar a tua mão na minha cabeça, toca meu coração com teus dedos
frios, eu tive tanto amor um dia, ela pára e pede, preciso tanto tanto tanto, eles
não me permitiram ser a coisa boa que eu era, eu então estendo o braço e ela
fica subitamente pequenina apertada contra meu peito, perguntando se está mesmo
muito feia e meio puta e velha demais e completamente bêbada, eu não tinha
estas marcas em volta dos olhos, eu não tinha estes vincos em torno da boca, eu
não tinha este jeito de cansado, e eu repito que não, que nada, que ela está
linda assim, desgrenhada e viva, ela pede que eu coloque uma música e escolho
ao acaso o Noturno número dois em mi bemol de Chopin, eu quero deixá-la assim,
dormindo no escuro sobre este sofá amarelo, ao lado das papoulas quase murchas,
embalada pelo piano remoto como uma canção de ninar, mas ela se contrai violenta
e pede que eu ponha Ângela outra vez, e eu viro o disco, amor meu grande amor.
Sobreviventes
Um comentário:
Sua inspiração me tira o sono!
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