sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

.uma esquizofrênica.

Era uma estrangeira. Nascida e criada no Brasil, mas uma estrangeira nata. Era estranha na terra. Dava a impressão de andar no mundo como quem desembarca de noitinha numa cidade desconhecida onde há greve geral de transportes. Talvez seus amigos mais íntimos e os amigos desses amigos saibam alguma coisa sobre a sua vida. De onde veio, onde nasceu, quantos anos tem, como vive. Mas era “tudo” uma parte muito pessoal. Ela deixava escapar pouquíssima coisa. Era um vácuo de informações. Um pseudônimo. Nebuloso, fragmentada, enigmática, na caricatura que fizeram dela. No íntimo era uma comum, uma filha, uma amiga e uma mulher. Viajou ao Egito. Mas nunca falou sobre, nem pretendeu voltar. Muitos anos depois, relembrou sua breve excursão turística, quando, nas “areias do deserto”, encarou desafiadoramente ninguém menos que a própria Esfinge. “Não a decifrei”, escreveu. Mas ela também não me decifrou. Ninguém disse mais nada. Temia, talvez, que ninguém a compreendesse. E assim fechou a boca, como um monumento, um monstro sagrado, ou um nada qualquer, amarrada a uma lenda que sobreviveria a ela, e que ela própria, de modo relutante e irônico, abraçou. Vinte anos depois de seu primeiro encontro com a Esfinge, escreveu que estava pensando em fazer outra visita: “Vou ver quem devora quem”.

Sobre Clarice, diálogo com Benjamin Moser

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