O cão quando passou pelo pescador, ia
a trote direito e de focinho baixo a murmurar. Levava destino, isso se via.
Logo adiante apressou o passo, entrou em corrida e perdeu-se nas dunas. Porém
não tardou a aparecer, desta vez esgalgado no cume das areias a uivar para os
fumos que vinham do oceano. Isto, bem entendido, intrigou o pescador que pelo
sim e pelo não se dirigiu às arribas, sem que o animal interrompesse um só
instante o seu apelo ou o olhasse sequer. E o pescador, subindo sempre, foi-se
chegando a ele e já muito próximo parou e viu:
Viu no fundo de uma cova uma conspiração de cães à volta do
cadáver dum homem; alguns saltaram para o lado assim que ele apareceu, mas logo
retomaram a presa; outros, nem isso, estavam tão apostados na sua tarefa que se
abocanhavam entre eles por cima do corpo do morto. Há aqui uma certa ironia,
segundo consta, a vítima gostava desvairadamente de cães.
PIRES, José Cardoso. Balada da Praia dos Cães. RJ: Bertrand
Brasil, 2009. (p.36)
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“A Balada dos Cães” conta os desdobramentos do medo, a
disciplina da morte, e os crimes políticos. Onde os cães-policiais medalhados,
cães perseguidores, cães que estão sempre à espreita, cães que farejam
desespero, são alegoricamente inseridos no romance como representantes à serviço
do poder.