quarta-feira, 5 de junho de 2013

.Como se um fio de cheiro urgente o tivesse chamado de longe.



O cão quando passou pelo pescador, ia a trote direito e de focinho baixo a murmurar. Levava destino, isso se via. Logo adiante apressou o passo, entrou em corrida e perdeu-se nas dunas. Porém não tardou a aparecer, desta vez esgalgado no cume das areias a uivar para os fumos que vinham do oceano. Isto, bem entendido, intrigou o pescador que pelo sim e pelo não se dirigiu às arribas, sem que o animal interrompesse um só instante o seu apelo ou o olhasse sequer. E o pescador, subindo sempre, foi-se chegando a ele e já muito próximo parou e viu:
Viu no fundo de uma cova uma conspiração de cães à volta do cadáver dum homem; alguns saltaram para o lado assim que ele apareceu, mas logo retomaram a presa; outros, nem isso, estavam tão apostados na sua tarefa que se abocanhavam entre eles por cima do corpo do morto. Há aqui uma certa ironia, segundo consta, a vítima gostava desvairadamente de cães. 

PIRES, José Cardoso. Balada da Praia dos Cães. RJ: Bertrand Brasil, 2009. (p.36)
______________________________________________________________
“A Balada dos Cães” conta os desdobramentos do medo, a disciplina da morte, e os crimes políticos. Onde os cães-policiais medalhados, cães perseguidores, cães que estão sempre à espreita, cães que farejam desespero, são alegoricamente inseridos no romance como representantes à serviço do poder.