segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

.Teria que apurar muito mais o enredo e os personagens.

Mas um belo dia acordou chorando, abaladíssima, queixando-se de estranhas visões. Dizia que passara toda a noite acordada; mas não pudera chamar ninguém porque com o medo ficara sem fala. Sentira uns assopros no ouvido, depois lhe sacudiam a cama, como se fosse um terremoto. Era uma dessas bofetadas que o mundo dos invisíveis atira aos pobres humanos, deixando-os cheios de susto e dúvida.

.Quanto aos pesadelos era assim, terminava um e começava outro...

Não é de um todo desesperador, mas tudo já parecia passar dos limites. Os pesadelos não diminuíam a ponto de (como ontem ou anteontem) conseguir voltar a dormir, agora a única situação era levantar e colocar as coisas em ordem. Nada de livre vontade, era tudo completamente forçado, porque dormir me parecia algo mais trabalhoso e penoso do que estudar, trabalhar, limpar a casa, seja lá o que fosse.

LG.

sábado, 29 de janeiro de 2011

.Encontrei tua carta, reconfortante.


Isso o remetia a outras feridas mais antigas, nem mais nem menos dolorosas, porque a memória da dor da feridantiga amenizou-se compreende? Menos pela cicatriz deixada, uma feridantiga mede-se mais exatamente pela dor que provocou, e para sempre perdeu-se no momento em que cessou de doer, embora lateje louca nos dias de chuva. O que provavelmente deve ser muito sadio.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

.É como um turbilhão.


Não fala de Maria, Maria lembra mar, que lembra aquele dia, que não é bom lembrar...Que dia, que tristeza, que noite, que agonia, que puxa a correnteza e traz a maresia...E bate aquele vento, que lembra um assobio, que lembra um sofrimento, que eu não merecia...Não fala não, te esconjuro, que só de imaginar, o tempo fica escuro e o espanto agita o mar. Que lembra aquele dia, que lembra uma canção, que faz lembrar Maria, e aí não lembro não a coisa fica séria é como um turbilhão, fazendo uma miséria no meu coração.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

.Pela passagem de uma grande dor (ao Som de Erik Satie - Desespoir Agreable).

– Que música é essa aí no fundo? – ela perguntou de repente.

– Chama-se “Por um desespero agradável” – mentiu.

– Você gosta?

– Não sei. Acho que dá um pouco de sono. Quem é?

– Um cara aí. Um doido

– Como ele se chama?

– Erik Satie. É bom, uma música bem sonífera. Ai você vai apagando, apagando. Então dorme. Quase sem sentir.

– Sem sentir?

– QUASE sem sentir, repetiu.

ABREU, Caio Fernando. Morangos Mofados. RJ: Agir, 2005. (p.42)

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

.Andava insone, roxas olheiras, teria que ter mais cuidado.

Depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo, por dentro de mim, que talvez eu não quisesse que soubessem que eu era eu, e eu era. Começou a acontecer uma coisa confusa na minha cabeça, essa história de não querer que soubessem, encharcada naquilo tudo de fracasso, tive vontade de voltar para algum lugar seco e quente, se houvesse, e não lembrava de nenhum.

ABREU, Caio Fernando. Morangos Mofados. RJ: Agir, 2005. (p.46)



.Eu podia mas não queria.

Era preciso um esforço tão terrível que precisei sorrir mais sozinha e inventar mais um pouco a felicidade, aquecendo meu segredo, cozinhando-o, e dei alguns passos, mas como se faz? Me perguntei, como se faz isso de colocar um pé após o outro, equilibrando a cabeça sobre os ombros, mantendo ereta a coluna vertebral, desaprendia, não era quase nada, eu, mantida apenas por aquele fio invisível.

ABREU, Caio Fernando. Morangos Mofados. RJ: Agir, 2005. (p.47)